quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Anonimato

Quando o astro-rei extravagante estendia seus braços a fim de apanhar a última réstia da noite, brotavam na rodoviária crianças pouco crescidas, filhas do sol, mostrando suas qualidades ou a falta delas para os passantes atônitos que raramente ousavam prestar atenção ao seu redor. Algumas dançavam frevo, maracatu ou qualquer dança típica da sua terra natal, outras, que nem cegas eram, fingiam sê-lo para atrair compaixão e tocavam sanfona ou acordeão; as que não tinham paciência, passeavam com canivetes ou pedaços de pau. São seres anônimos e, às vezes, invisíveis!
Mas, em meio a toda essa balbúrdia, havia um raio de luz, a esperança, a meiguice: havia Duda! Em Duda reinava a jovialidade, a simplicidade e a disposição em amparar a todos que necessitavam. Com apenas 10 anos, concedia conselhos aos mais velhos de lá. Diziam que tinha sido Duda quem tirara Tiãozinho das drogas e que, por ela, várias crianças aposentaram seus instrumentos de ataque.
De todos que lá tentavam a vida, era Duda quem mais demonstrava perseverança. Proclamava aos ventos que um dia sairia daquele meio num carro prateado, grande e formoso, e iria para o Rio de Janeiro. Dizia que seria famosa e seu nome estaria nos jornais.
Vendia balas e pirulitos sem dar atenção à imoralidade de alguns. Quando chovia, preocupava-se em guardar os objetos de venda, seus e alheios, para que não fossem estragados, e ficava sempre ensopada; e, ao sair do sol, chamava todos com entusiasmo, demonstrando uma feição de ternura e deslumbramento, para verem o arco-íris... Aquela graciosa visão lhe salvava o dia, por pior que pudesse ter sido.
Dos freqüentadores da rodoviária, realmente era ela quem mais merecia ter saído daquele sofrimento. Duda mantinha amizade com todos, não brigava, pedia desculpas mesmo isenta de culpa. Uns diziam que era um anjo, alguns, que era iluminada, enquanto outros apenas a invejavam.
Num dia quente, ensolarado, Duda saiu bem disposta para mais um dia na rodoviária. Ao atravessar a rua, a caminho do seu ponto de venda, um ônibus com destino ao Rio de Janeiro tentou frear; mas foi em vão.
Sonhos dourados na lama, esperanças ao léu, um broto de vida que não floresceu. E não saiu nem no jornal...

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